Por Rita Sepúlveda e Miguel Crespo, CIES_Iscte
A Covid-19 e a necessidade de isolamento social, como medida para evitar o contágio, trouxeram desafios em várias áreas, ao mesmo tempo que introduziram novas dinâmicas num conjunto de rotinas diárias. Neste quase mês de quarentena em Portugal, tem sido observável a transposição para ambientes digitais de atividades quotidianas, como fazer compras, frequentar ou lecionar aulas ou mesmo praticar desporto, para mencionarmos apenas algumas.
Nesta realidade de confinamento social, o recurso a soluções digitais reflete formas de o contornar, dando resposta a necessidades de relacionamento, seja numa perspectiva mais convencional, como ver ou falar com outros, ou numa mais criativa, como fazer festas, jantares ou dar/assistir a concertos. Aplicações como o Zoom, Skype ou House Party têm tido, ao longo dos últimos dias, uma presença constante no topo do ranking das aplicações gratuitas. Dados que complementam o aumento da procura de ferramentas digitais de trabalho, como referido no artigo do MediaLab CIES_Iscte “Portugueses e a internet na quarentena”.
No contexto de uma nova normalidade digital, e em específico no âmbito dos relacionamentos, não podemos esquecer as plataformas de online dating. Potenciadas pela lógica da sociedade em rede, conferem a oportunidade aos utilizadores de se distanciar das formas ou locais tradicionais de socialização, oferecendo não só variedade e multiplicidade de possíveis parceiros, como também um conjunto de promessas, baseadas numa gratificação instantânea, como pode ser constatado ao ler os claims das aplicações e como estas se apresentam. O OKCupid indica ser um serviço que ajuda a encontrar um relacionamento e não apenas um engate (Figura 1), o Match incentiva a começar algo real e o Badoo indica que a sua “missão é fornecer a melhor tecnologia para as pessoas se conhecerem, porque a felicidade é melhor partilhada.”
Em Portugal, e segundo o estudo “Os Portugueses e as Redes Sociais 2018”, 5,1% dos inquiridos indicou ter conta no Badoo e 4,8% no Tinder. No ranking português referente ao grossing, nas categorias lifestyle e social networking, as aplicações de dating são uma presença constante (Figura 2). O Tinder ocupa o primeiro lugar do top lifestyle, seguido da app happn e da app MoreDates, que na sua apresentação promete trazer uma lufada de ar fresco à vida dos utilizadores. Já no top relativo às apps registadas como social networking, o Badoo é número 1 no top, seguindo-se as apps MyDates e o Grindr, que se apresenta como a “maior rede social do mundo para gays, bi, trans e queer”.
O modelo de negócio das plataformas de online dating assenta em três opções: 1) a assinatura, formato no qual é exigido ao utilizador um valor mensal ou anual para poder usar o serviço; 2) o modelo freemium, que permite o registo e acesso gratuito a funcionalidades básicas, combinado com publicidade e com a possibilidade de o utilizador aceder às restantes funcionalidades através de pagamentos e 3) micro pagamentos ou compras na aplicação, cujo princípio é o mesmo do modelo freemium, mas colocando à disposição do utilizador funcionalidades específicas por um determinado valor, mas sem uma mensalidade associada.
Já quanto ao processo de online dating (Figura 3) e de uma forma geral, este divide-se em três etapas:
- A construção do perfil, que pode conter/exigir diferentes tipos de informação,
- A correspondência, na qual os utilizadores definem critérios de pesquisa e navegam entre perfis apresentados,
- A fase da descoberta, na qual os utilizadores começam a conversar, podendo a conversa migrar para outras plataformas e/ou evoluir para um encontro presencial.
Uma vez que, para a correspondência, grande parte das aplicações funciona com base na geolocalização, a denominada location-based real-time dating (LBRTD), e que na fase da descoberta os encontros presenciais estão adiados, em tempos de Covid-19 o ecossistema de online dating encontra desafios específicos. Por um lado, as apps desejam reter utilizadores, evitando que estes cancelem as suas subscrições, abandonem momentaneamente a app (estando temporadas sem usar), ou eliminem os seus perfis de forma definitiva. Por outro lado, os utilizadores vêem os seus encontros físicos serem adiados e os locais de utilização restringidos a casa.
Neste contexto, as empresas detentoras de serviços de online dating, mercado no qual o Match Group, Inc detém 24 marcas no seu portfólio, entre as quais o Tinder, o Match e o OkCupid, têm-se dirigido aos utilizadores com comunicação adaptada aos diferentes momentos do decorrer da atual pandemia. As primeiras comunicações oficiais sobre o coronavírus nas aplicações de dating surgiram no início de março e seguiam as recomendações genéricas da Organização Mundial da Saúde. Eram relativas aos cuidados a ter, como lavar as mãos, evitar tocar na cara e manter o distanciamento social em locais públicos. A seguir tornaram-se mais específicas, por exemplo não recomendando encontros pessoais. As recomendações também contemplavam cuidados no âmbito da saúde mental ou remetiam para fontes de informação oficiais (Figura 4). O remeter para fontes seguras tem sido uma prática verificável em aplicações de outra natureza, como verificou o relatório do MediaLab CIES_Iscte “#covid19pt no Instagram: Expressão visual de ativismo e pertença comunitária em tempo de crise”.
Em Portugal, o estado de emergência foi decretado no dia 18 de março e, segundo os dados do relatório produzido pela Google com base na mobilidade, após tal declaração registou-se um decréscimo de 83% no âmbito de atividades relacionadas com retalho e recreação, uma diminuição de 53% relativa aos locais de trabalho e um aumento de 22% em âmbito residencial. Esta tendência verificar-se-á de forma transversal à medida que os países adotam medidas mais restritivas devido à situação de pandemia.
Ora, se as apps de dating estão assentes em funcionalidades e configurações facilitadas pelos aparelhos móveis, como o smartphone, entre as quais se englobam a portabilidade ou localização, em tempos de confinamento os comportamentos alteram-se, tal como mostram os dados já referidos.
Perante tal situação, e no âmbito da descoberta, as apps sugerem aos utilizadores adaptar os encontros à realidade que estão a experienciar. Na impossibilidade de os mesmos acontecerem face a face, as propostas remetem para o recurso a plataformas de videochamada externas (Figura 5), contrariando as suas próprias dicas de segurança online, ou remetendo para serviços integrados, como é o caso do Bumble ou do Badoo.
O Badoo chega a publicar um tutorial na sua página de Instagram numa lógica “How to” (Figura 6), sobre como usar a videochamada, acompanhado com a hashtag #DateHonestly, premissa da app, incentivando à autenticidade, uma das questões omnipresentes em ambientes de online dating.
Entre aqueles utilizadores que preferem não usar videochamada e manter-se apenas no chat textual, é expectável que o volume de mensagens aumente, mas também de práticas no âmbito do sexting.
É importante recordar que são várias as motivações que os utilizadores indicam para usar serviços de online dating. Se entre elas se destacam conhecer alguém com quem formar um relacionamento, independentemente da natureza ou caráter, ou ter sexo, também existem aqueles utilizadores cuja principal razão para usar é estar entretido ou ter companhia.
Assim, nas publicações das diferentes marcas de online dating não só está presente a ideia de que o distanciamento físico não significa estar desligado, mas também se multiplicam as ideias ou sugestões de como os encontros podem ser transformados para o ambiente digital. Essas sugestões são tão variadas como cozinhar, assistir a séries, jogar ou simplesmente tomar uma bebida. O OkCupid partilhou o resultado de um questionário (Figura 7) no qual perguntava aos seus utilizadores qual era o encontro virtual ideal, e nas respostas estão bem presentes tais ideias: 31% dos respondentes indicou “algum tipo de atividade como um jogo”, 29% preferiu “jantar ou tomar um copo”, 25% escolheu “simplificando-o com o videochat” e 15% elegeu “filme ou série de TV”.
Na atual situação, os utilizadores das LBRTD, das quais são exemplo o Tinder ou a happn, vêem o local de utilização das apps limitado às imediações do seu local de isolamento social. Isto diminui o perímetro de atuação e a pluralidade de pessoas que pode encontrar, com a ideia de suposta imediatez suspensa. Como resposta às limitações, o Tinder tornou gratuita a funcionalidade passport. Anteriormente paga, permite aos utilizadores colocarem um pin no país que pretendem explorar, não estando limitados em termos de distância, como na versão gratuita. Já a happn, cuja lógica de funcionamento assenta na premissa de encontrar pessoas com as quais os utilizadores já se tenham cruzado, sugere formas de contornar a situação, mas sem mencionar restrições. (Figura 8).
Entre as publicações das aplicações nas redes sociais, também existe espaço para o humor. Parte delas são no âmbito do conjunto dos cuidados que os utilizadores devem ter no combate ao Covid-19, ou atitudes a (não) ter. (Figura 9).
Não é possível ignorar que o Covid-19 tem imposto desafios no âmbito da intimidade, incluindo em contextos de online dating, com as apps a apresentarem alternativas ao confinamento social e os utilizadores a reinventarem os encontros. Estamos, portanto, perante mudanças, ainda que temporárias, do que são as interações normalizadas e padronizadas do romance, da intimidade, mas também do sexo – veja-se o aumento da venda de sextoys. Assim, não só a intimidade é mediada como pode acontecer sem existir contacto humano, com ou sem recurso a sextoys que permitam controlo à distância, via wireless.
Não obstante, nesta negociação da intimidade no âmbito de online dating, várias questões se colocam no pós Covid-19, não só do ponto de vista tecnológico, (como exemplo, será a funcionalidade videochamada integrada em todas as apps? e os utilizadores vão adotá-la?), mas também do ponto de vista relacional. Prolongar-se-á a fase de descoberta em contexto digital, com jantares virtuais, adiando o encontro físico?
Os relatos de ghosting aumentarão quando os utilizadores já não estiverem obrigados a permanecer em casa? Estará a intimidade envolvida em novos valores nos quais o digital e as tecnologias de informação e comunicação terão um peso cada vez maior? O conjunto de comportamentos adotados em contexto de Covid-19, que incluem práticas específicas, serão transpostos para o futuro, moldando-os?
O online dating parece mais do que nunca imitar experiências offline, com o recurso à internet a alterar como a intimidade é gerida e negociada. Não se pode esquecer que, em contextos de online dating as impressões que cada utilizador tem sobre o outro são construídas através de um perfil, composto por fotografias estáticas, ou no melhor dos casos, um vídeo de poucos segundos. Estamos a falar de um perfil que é uma construção pessoal de virtudes e demérito de defeitos, e não de um retrato da realidade, pelo que o “outro” inicia sempre uma relação baseada em atributos positivos e mediados, e na ideia que construiu a partir dos mesmos.
Numa situação como a atual, de isolamento social, as possibilidades de transformação de um perfil numa pessoa real parecem mais complexas à medida que se estabelece uma relação de online dating, mas ainda é cedo para perceber se, por um lado, os serviços de dating vão incorporar/manter as novas funcionalidades mesmo no contexto pós-crise e, por outro, como é que os utilizadores vão alterar os seus comportamentos nos processos iniciados usando uma app.
NOTA: Este estudo também estão disponível em versão PDF.