To be continued… O cinema em tempos de pandemia

Por Jaime Lourenço, CIES-Iscte

Quando o grande ecrã se apaga por vários meses devido a uma pandemia, todo o sector do cinema é obrigado a parar, ficando sem espectadores e afundando-se, provavelmente, na maior crise que a indústria da sétima arte já viveu. Este podia ser o ponto de partida para um guião de uma grande produção de Hollywood, mas é o retrato do cenário que se vive no sector do cinema.
Tal como o relatório “Impacto do Coronavirus e da crise pandémica no sistema mediático português e global”, do OberCom, indica, o cinema é um dos sectores mais prejudicados pela pandemia que atravessamos em que se estimam efeitos devastadores. Um dos grandes centros de produção cinematográfica à escala global, Hollywood, ficou afectado não só a nível da suspensão de receitas de bilheteira ou publicidade, pela paralisação de produções e rodagens, mas também, como o relatório indica, pelo acentuar dos riscos laborais.
Segundo a Agência Lusa, em Portugal, observa-se um panorama agudo no sector do cinema em que as salas foram encerrando de forma gradual até 18 de Março e se registou uma quebra de mais de 75% do número de espectadores e em receitas, comparando com Março de 2019. Em março deste ano registou-se 1,3 milhões de euros, quase cinco vezes menos do que no mesmo mês do ano anterior. A estes números junta-se todo o leque de profissionais do sector que ficou paralisado e envolto numa incerteza laboral.
A segunda versão do relatório do OberCom refere mesmo que não restará à indústria cinematográfica muito mais do que esperar que a crise pandémica se resolva, de forma a conseguir garantir a continuidade de produções.

Alguns dos blockbusters mais aguardados de 2020. Todos, à excepção de Tennet, de Christopher Nolan, viram a sua data de estreia adiada
Alguns dos blockbusters mais aguardados de 2020. Todos, à excepção de Tennet, de Christopher Nolan, viram a sua data de estreia adiada

O cenário não é animador, além da paralisação de todas as fases de produção, também os filmes com estreia marcada para a primeira metade do ano foram adiados. Os casos mais conhecidos são os dos grandes blockbusters, como o novo capítulo de James Bond, em 007: Sem Tempo para Morrer, o remake em live-action da heroína da Disney, Mulan, ou a sequela da super-heroína Mulher Maravilha 1984.
Ainda com a estreia marcada para a data prevista (Julho) está Tennet, de Christopher Nolan, outro dos filmes mais aguardados deste ano. O realizador referiu, ao Washington Post, que “as salas de cinema ficaram às escuras, e irão ficar durante algum tempo. Mas os filmes, ao contrário de produtos não rentáveis, não perdem o seu valor. Muito desta perda de curto prazo é recuperável. Quando esta crise passar, a necessidade de envolvimento colectivo humano (…) será mais forte que nunca. A combinação de procura acumulada e a promessa de novos filmes poderá aumentar as economias locais e contribuir biliões para a nossa economia nacional. Nós não o devemos apenas aos 150,000 trabalhadores desta grande indústria americana para os incluir naqueles que ajudamos, nós devemo-lo a nós próprios. Precisamos daquilo que os filmes nos podem oferecer”. Segundo avança a revista Variety, o realizador quer que Tennet seja o filme que vai reabrir as salas de cinema norte-americanas.
Quer internacionalmente, quer a nível nacional, a pandemia interrompeu o trabalho de todo o sector. Quando o estado de emergência foi declarado, Cláudia Varejão encontrava-se na ilha de São Miguel em pré-produção de uma longa-metragem. A realizadora disse, à revista Gerador, que, apesar de alguns constrangimentos, tem conseguido dar continuidade ao trabalho, embora seja à distância: “interrompemos o trabalho de campo, dada a impossibilidade de viajarmos, mas continuamos a desenvolver o trabalho a partir das nossas casas”. Por sua vez, o realizador Sérgio Graciano teve que interromper a rodagem de Salgueiro Maia – O Implicado, que estava prestes a iniciar-se e que tinha estreia marcada para o final deste ano.
Com o período de confinamento, muitas foram as iniciativas e opções disponibilizadas. Em Portugal, vários agentes do sector têm disponibilizado produções online de forma gratuita durante o período de confinamento. É o caso da Medeia Filmes, que disponibiliza vários filmes por tempo limitado. Outro exemplo é a Cinemateca Portuguesa que reforçou a sua programação online com filmes portugueses. Contudo, o director, José Manuel Costa, referiu, numa nota de imprensa, que o “cinema em casa, sendo muito bem-vindo nestas circunstâncias, não deve assim suspender a nossa atenção para um problema de fundo que não é menos de que uma questão essencial tanto para o futuro do cinema entre nós como para a variedade e riqueza da nossa vida social.”
Apesar destas iniciativas, foram as plataformas de streaming que aumentaram o número de subscritores e de visualizações. De acordo com o jornal The Guardian, a Netflix aumentou o número de subscritores em 15,77 milhões, o que representa o dobro daquilo que era expectável para este período.
Segundo dados da Marktest, entre Fevereiro e Abril de 2020, em Portugal, registou-se um aumento de subscritores de serviços de streaming na ordem dos 800 000 novos subscritores, aumentando para mais de 2,5 milhões de subscritores destes serviços só na Netflix e HBO em Portugal.
No caso da Filmin, a plataforma portuguesa de cinema independente, as subscrições triplicaram. À revista Gerador, Anette Dujisin, uma das directoras, referiu que desde a imposição do isolamento social que se observou um crescimento exponencial do número de subscritores e que chegou a triplicar depois de um mês em estado de emergência. Dujisin refere que “obviamente é um reflexo do fecho das salas de cinema e da obrigatoriedade de ficar em casa, mas por outro lado também acho que ainda não atingimos todo o nosso potencial nem chegamos ainda ao nosso público, estamos a chegar. E tenho confiança de que muitos dos que subscreveram agora, também vão ficar no futuro”.
Se em 2019 e nos primeiros meses de 2020 as plataformas, nomeadamente a Netflix, já se tinham afirmado enquanto serviços de streaming mas também enquanto produtoras de audiovisual (recorde-se os resultados de, por exemplo, Roma, de Alfonso Cuarón, nos Óscares do ano passado), estes números vêm cimentar essa afirmação e solidificar a sua posição no sector audiovisual internacional.
Com o encerramento das salas de cinema, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, a entidade que atribui os Óscares, decidiu que este ano, excepcionalmente, irá permitir a elegibilidade de filmes estreados em plataformas de streaming. Até então, apenas eram elegíveis produções que estivessem em cartaz pelo menos uma semana nas salas de cinema. A Academia acentua que se trata de uma excepção e que continua firme na distinção entre filmes estreados em sala e em streaming. Contudo, e tendo em conta o panorama que vivemos, veremos se esta decisão não será o prenúncio do futuro da Academia.
Além das cerimónias de entrega de prémios, são os festivais de cinema que também fomentam a economia e o desenvolvimento do sector a nível internacional. O Festival de Cannes, um dos grandes eventos anuais da sétima arte, foi cancelado, algo que só havia acontecido durante a 2ª Guerra Mundial na história do festival. Thierry Fremaux, o director do festival, defendeu, numa entrevista ao El País, que descartava a hipótese de o festival se realizar online, uma vez que não faria justiça ao legado do histórico festival e que considera as plataformas como televisão. O Festival de Locarno, outro dos grandes eventos europeus do cinema, também viu o mesmo caminho, juntando-se aos festivais de Tribeca, dos EUA e Karlovy Vary, da República Checa. No entanto, já decorreu, em formato online, o festival suíço Visons du Réel, que contou com dois filmes portugueses em competição.
Com todos estes constrangimentos, vários festivais uniram-se, de acordo com a revista Variety, para criar um evento global de cinema no Youtube no final de Maio. Será o festival We Are One, entre 29 de Maio e 7 de Junho, que contará com a exibição de longas e curtas-metragens, e sessões de debate. Este evento está a ser coordenado pelo festival de Tribeca com a colaboração de Cannes, Sundance, Veneza, Locarno, Karlovy Vary, San Sebastian, Macau, Tóquio ou Guadalajara.
Em Portugal, os festivais de cinema também foram adiados. O Indie Lisboa, que estava previsto decorrer entre 30 de Abril e 10 de Maio, foi adiado para o final de Agosto e inicio de Setembro. A direcção do Festival referiu, em comunicado, que “a possibilidade de o fazer num formato digital não corresponderia às nossas expectativas, nem às do público. Organizar um festival é exibir filmes e ter um contacto directo com o nosso público, os cineastas e os restantes profissionais”. Além do Indie Lisboa, também o Curtas Vila do Conde, o Monstra, FESTin, Festa do Cinema Italiano ou o Festival de Cinema e Literatura de Olhão foram adiados. O YMOTION, Festival de Cinema Jovem de Famalicão, optou por outra alternativa e está a decorrer em versão online até 7 de Novembro.

Fotograma do filme Grease (1978), de Randal Kleiser.
Fotograma do filme Grease (1978), de Randal Kleiser.

De acordo com a informação veiculada pelo Primeiro Ministro a 30 de Abril, as salas de cinema poderão abrir a partir de 1 de Junho, embora tenham que ser seguidos procedimentos de segurança como a desinfeção regular e o reforço de limpeza das salas, a utilização de máscara, bem como a redução da lotação das salas. O Cinema Nimas foi dos primeiros a comunicar a sua reabertura, prevista para 10 de Junho.

Apesar de a reabertura das salas já ter tido luz verde para avançar, outras iniciativas estão a ser comunicadas como as sessões de cinema drive-in. A Comic Con Portugal anunciou, para a mesma data em que as salas podem reabrir, 1 de Junho, uma sessão drive-in com a antestreia da comédia O Meu Espião, de Peter Segal.  A Câmara Municipal da Batalha também decidiu investir neste formato já entre os dias 15 e 17 de Maio, em que promete exibir filmes premiados e recentes em seis sessões para crianças e adultos, ao longo de três dias. Também o Festival Internacional de Cinema de Avanca irá exibir os filmes em competição num ecrã gigante ao ar livre.

O cinema vive um cenário desolador, onde a luz escura das salas perdeu todo o seu simbolismo. Tal como o relatório do OberCom refere, resta esperar que a pandemia seja ultrapassada para que as produções regressem e que as salas de cinema voltem a ganhar luz no seu grande ecrã na sua plenitude. A questão é, se quando este período for ultrapassado, não será tarde demais para pequenas produtoras e profissionais de um sector, no caso português, fragilizado.

Fontes utilizadas para este artigo:

Drive-ins à americana arrancam em força.

Por todo o mundo, os filmes voltam aos carros. O drive-in está de regresso?

No escuro de cada sala, escondem-se os planos do futuro do cinema.

Netflix doubles expected tally of new subscribers amid Covid-19 lockdown.

Serviços de streaming somam 800 mil novos assinantes em Portugal em dois meses.

Óscares abrem exceção para filmes das plataformas de streaming.

Covid-19: Festival de Cannes já não será no verão e direção discute o que fazer.

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