Por Eduardo Acquarone, Doutorando em Ciências da Comunicação
Com Inês Narciso, José Moreno e Nuno Palma
No começo de abril, a BBC advertiu, numa série de reportagens, que a imprensa estatal russa estava distorcendo informações relativas à ajuda do país à Itália durante a crise provocada pelo Covid-19. Um dos veículos usados para propagar desinformação é a agência de notícias Sputnik News, que desde fevereiro de 2018 tem uma repórter baseada em Lisboa.
Atualmente a Sputnik produz conteúdo em 30 línguas e está presente em cerca de 100 países. Abriu uma página em português, voltada para o público brasileiro, em 2017, e no início de 2018 colocou um pé também em Portugal, com a presença de uma repórter – primeiro como freelancer, depois como correspondente. Ampliar mercados faz parte da estratégia da empresa criada em 2014, um ano após a reformulação da antiga agência de notícias russa, rebatizada de Rossiya Segodnya.
A correspondente em Portugal – que tem um excelente currículo e participação em diversas outras empresas respeitadas de comunicação social – escreve sobre assuntos gerais, com um foco nos temas que têm relação direta com o Brasil ou com os brasileiros que estudam e trabalham em Portugal. Desde a estreia, foram publicados 110 artigos escritos em Lisboa na página do Sputnik News Brasil.
Quando cada um desses artigos é analisado individualmente, é difícil enxergar algo fora do tom – eles tratam de assuntos como os vistos gold em Portugal, o carnaval brasileiro nas ruas de Lisboa e, recentemente, a luta contra o Covid-19. Aparecem, em menor número, alguns assuntos geopolíticos que são raramente tratados pelos correspondentes brasileiros em Lisboa, como as recentes disputas entre Portugal e Venezuela pelo repatriamento de portugueses por causa da pandemia ou o incidente com o navio Resolute.
Desinformação
A análise é necessária porque a Sputnik News não é uma agência de notícias tradicional. Ela já foi investigada pelo FBI, acusada de ser um braço de propaganda do governo russo, denunciada pela OTAN por propagar desinformação, e constantemente alvo de várias agências de verificação de factos e identificação de fake news.
Em 2017, o jornalista norte-americano Andrew Feinberg escreveu um relato em primeira pessoa sobre os meses em que trabalhou em Washington como repórter da Sputnik News. Segundo a história publicada pelo Politico.com, o conteúdo da Sputnik precisa sempre refletir a visão russa em cada reportagem, mesmo que isso não se alinhe com a realidade.
Comecei a perceber que a missão da Sputnik não era tanto reportar as notícias e sim criar narrativas que, ou criam dúvidas sobre situações desfavoráveis à Rússia e seus aliados, ou então prejudicam a reputação dos Estados Unidos e seus aliados (Andrew Feinberg, My Life at a Russian Propaganda Network)
A “divisão do Ocidente” parece ser um dos objetivos do aparato de comunicação russo. Desde janeiro deste ano, um programa chamado Rádio Sputnik começou a ser transmitido em três estações de Kansas, Missouri. Em uma reportagem do New York Times, o jornal nota que:
O objetivo da Sputnik de semear divisão não é exatamente um segredo. Margarita Simonovna Simonyan, editora-chefe da Rossiya Segodnya, deixou claro em uma entrevista ao programa Pravo Znat, citada num artigo do El País, sua ideia de uma nova ordem mundial é a “realidade alternativa”.
O mundo ocidental como conhecíamos e apreciávamos, com seus valores ocidentais, não existe mais. Não existem mais valores, não existe mais um mundo ocidental. O que resta são regimes autoritários disfarçados por bandeiras nacionais” (tradução de citação no artigo do El País).
Pesquisas
Pesquisas académicas também chegaram a conclusões semelhantes. O investigador Kohei Watanabe, da Universidade de Innsbruck, na Áustria, monitorizou entre 2017 e 2018 a Sputnik News (em inglês) e concluiu que o site usa “reportagens sobre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, de modo estratégico e tático, para promover o ceticismo em relação a organizações ocidentais”.
Outro investigador, Robert Swanson, mostra que a máquina de propaganda russa atua também em outros países, como Roménia e Hungria. Swanson, que estuda guerras de propaganda e informação no Center for European Policy Analysis, diz que o RT e a Sputnik são apenas duas das ferramentas de propaganda da Rússia de hoje, mas as suas mensagens são mais efectivas do que a propaganda da antiga União Soviética.
Método
Segundo uma reportagem do El País, existe um método claro em todos os lugares onde a RT e a Sputnik atuam:
- Fontes pseudo-idóneas: especialistas desacreditados por outros órgãos de imprensa e que fazem declarações impactantes;
- Máximo impacto online, através de uma rede de sites financiados pelo governo russo, apesar do bloqueio de comercialização em plataformas como o Twitter.
- Alcance global: presente em cerca de 100 países e em 30 línguas, o orçamento russo prevê cerca de 1,3 mil milhões de euros em 2020 para os diversos canais estatais, incluindo 106 milhões de euros para a Rossiya Segodnya.
Geopolítica global
No entanto, um outro aspecto a se considerar é que, em cada língua ou região onde atua, a Sputnik tem enfoques editoriais diferentes. Em comparação com a Al Jazeera, um grande número de estudos mostrou que a empresa têm cobertura diferente, com enfoques diferentes e, lógico, públicos diferentes quando se compara a produção em árabe e inglês (Alnajjar, 2019; Fahmy & Emad, 2011; Mohammed & Eid, 2017; Satti, 2020).
Com Bolsonaro, a política externa de Brasília concentrou-se em ter em Donald Trump seu maior aliado. Ao mesmo tempo, por causa de questões económicas, políticas e sociais, o fluxo de imigrantes brasileiros para Portugal aumentou muito – e, com isso, o interesse do Brasil pelas questões portuguesas. Esse é o contexto que enquadra a entrada da agência russa na língua portuguesa.
Numa breve análise dos artigos escritos pela repórter da Sputnik em Lisboa em 2020 – e usando correspondentes dos jornais brasileiros Folha de S. Paulo e O Globo como comparação – não foram notadas inconsistências jornalísticas, desinformação ou uso de fontes não-idóneas.
A repórter da Sputnik publica com a mesma frequência que a da Folha de S. Paulo, e cerca de duas vezes mais que o correspondente do O Globo. Na comparação, apenas a Folha de S. Paulo tem um alinhamento um pouco mais amplo, não no jornal, mas sim no blogue, onde são publicadas histórias mais leves e com enfoque local.
Nas 26 matérias publicadas pela Sputnik a partir de Lisboa, em 2020, é possível identificar um enfoque russo em cinco delas, geralmente em assuntos de política internacional que estão na esfera de influência de Moscovo.
Em poucas ocasiões o tom sai um pouco do habitual das agências de notícias tradicionais, como na reportagem que fala da inauguração de um busto do escritor Paulo Coelho no Palácio dos Anjos: “O autor da peça é o pintor e escultor russo Gregory Pototsky, que possui 150 trabalhos espalhados pelo mundo”, diz a reportagem cuja manchete é “Escritor Paulo Coelho é homenageado em Portugal com escultura de artista russo“.
Sputnik no Brasil
No site brasileiro da Sputnik, no entanto, a influência política é mais clara. Na imagem acima está o principal destaque da página na sexta-feira, 4 de abril.
A principal reportagem destaca que a relação do Brasil com os Estados Unidos é muito “frágil”, baseado apenas na conversa com um único analista. Essa matéria não é assinada por nenhum jornalista da Sputnik.
Uma segunda história também coloca os governos brasileiro e norte-americano em polos opostos, ao descrever a batalha por equipamentos médicos. Essa reportagem também não é assinada.
Em outra reportagem publicada no dia 26 de março sobre o “poder brando” que a Rússia exerce com a ajuda humanitária, o viés da Sputnik aparece de maneira mais clara, mas mesmo assim na versão em português não há menções aos factos que foram disputados pela BBC quando analisou reportagens em inglês ou russo.
Essa reportagem foi reproduzida em sites como o Pátria Latina, que se descreve como um lugar de “jornalismo crítico de postura marcante frente à globalização, independente ao poder econômico e de profunda identidade com os anseios da sociedade civil”, cujo objetivo é furar o bloqueio das poderosas multinacionais da comunicação que espalham suas notícias globalizadas”. Também em português, a mesma reportagem da Sputnik aparece no site da AhlulBayt News Agency, um site mantido por uma ONG xiita apoiada pelo governo do Irão.
Em nenhuma versão – seja no texto original da Sputnik, ou nas reproduções de outros sites – a história teve um grande alcance nas redes sociais, conforme ilustrado pelas figuras abaixo.
Em português, o Sputnik ainda tem um pequeno alcance. Segundo a ferramenta de medição de tráfego SimilarWeb, o Sputnik Brasil teve pouco menos de 10 milhões de visitas únicas nos três primeiros meses do ano, número pequeno no mercado brasileiro de notícias. Apenas como comparação, o G1, site do Grupo Globo, teve 891 milhões de visitas no mesmo período, e a Folha de S. Paulo, 209 milhões.
Alguns números do Sputnik, no entanto, chamam a atenção. Os domínios que mais levam ao site são o agregador de RSS feedly.com (com 37%) e o Brasil 247 (com 30%), uma publicação digital considerada de esquerda pelo GPS Ideológico publicado pela Folha de S. Paulo.
Se em português a Sputnik parece ainda não adotar a mesma técnica de desinformação e máximo impacto online, a estrutura está montada. Resta-nos acompanhar o trabalho feito, seja no Rio de Janeiro, seja em Lisboa, para prevenir um ambiente mediático ainda mais pernicioso.
Referências bibliográficas citadas
Alnajjar, A. (2019). How Arab is Al Jazeera English ? Comparative Study of Al Jazeera Arabic and Al-Jazeera English News Channels. Global Media Journal, January 2009.
Fahmy, S. S., & Emad, M. Al. (2011). Al-jazeera vs Al-Jazeera: A comparison of the network’s english and Arabic online coverage of the US/Al Qaeda conflict. International Communication Gazette, 73(3), 216–232. https://doi.org/10.1177/1748048510393656
Mohammed, F., & Eid, S. (2017). Systemic Analysis of News Tackling of Al Jazeera Arabic and Al Jazeera English : A Paradigmatic Dimension. International Journal of English and Education, 6(3), 71–81.
Satti, M. (2020). Al Jazeera Arabic and Al Jazeera English Websites: Agenda-Setting as a Means to Comparatively Analyze Online News Stories. Communication & Society, 33(1), 1–13. https://doi.org/10.15581/003.33.1.1-13
Última correção: 17 de abril de 2020 (erro ortográfico).