A utilização de recursos imagéticos na composição das montras
Por Livino Neto (texto) e Décio Telo (edição e visualizações)
Este é o terceiro ensaio da trilogia que procura discutir a cobertura mediática sobre a pandemia de Coronavírus a partir das capas dos jornais “Correio da Manhã”, “Jornal de Notícias” e “Público”. Neste texto analisamos a composição das montras jornalísticas durante a estação pandémica, sendo parte da iniciativa de investigação científica do MediaLab CIES-IUL inscrita no projeto “Barómetro de Notícias 2020-2021”.
No primeiro texto argumentou-se como os conceitos de evento (Couldry e Hepp, 2018) e acontecimento jornalístico (Mesquita, 2003) são relevantes para a compreensão da narrativa jornalística sobre a pandemia de Coronavírus, articulando-os a partir da perceção da composição das capas dos três jornais, tendo em vista a conexão dos interesses privados e públicos na tensão permanente no interior do campo jornalístico (Traquina, 2005). No segundo texto, explorou-se de forma mais aprofundada a analogia das “montras jornalísticas”, que foram tipificadas em “montra de saldo”, “montra de diversidade” e “montra de produto”, tendo em vista a composição dos quadros sobre a pandemia de Coronavírus em cada um dos jornais estudados. No presente estudo explora-se a utilização dos recursos imagéticos na composição das montras jornalísticas sobre o Coronavírus.
Numa abordagem materialista, na sua clássica obra “O Capital da Notícia”, Marcondes Filho considera que “as capas dos jornais são como vitrines onde são expostos os artigos separadamente. Uns mais, outros menos atraentes, mas de qualquer forma artigos para vender o jornal” (Filho, 1986:51). Ao demonstrar a construção da notícia enquanto processo de produção de mercadoria, o autor aponta para um jogo de fragmentação da realidade e de personificação dos processos sociais no texto noticioso.
A fragmentação desloca o contexto social da constituição de um nexo ou fio condutor, operando a partir da desvinculação da notícia do seu fundo histórico-social, jogando-a no mundo como um facto sem origem ou ligação com nada, num processo de reificação da informação, semelhante ao fetichismo geral da mercadoria no modo de produção capitalista. Já o processo de personalização dos factos sociais e das notícias em geral, está associado ao mecanismo de intimização[1]James Stanyer (2013) define intimização, no domínio da política, como a publicitação de informação e imagens de atos de intimidade.das questões públicas e do culto à personalidade, conduzindo tanto ao endeusamento quanto à execração individualizada dos agentes sociais (Filho, 1986).
Segundo Mesquita (2002), a fotografia, assim como o cinema e a televisão, associou, em diferentes suportes técnicos, o mosaico da informação fragmentada ao fascínio da imagem, carregando-a de afetividade e emoção, fazendo com que a informação vivesse, a partir do início do século XX, uma relação comum com o espetáculo. Tendo em vista os aspetos já acumulados nos textos anteriores, é de imaginar que a “montra de saldos” seja particularmente marcada pela fragmentação e pela personalização da notícia, enquanto a “montra de diversidade” estaria numa posição de meio termo. Neste cenário, a “montra de produto” apresentaria características de fragmentação e personalização de forma mais oculta. Supõe-se que estas características, assim como outras, podem ser observadas a partir das figuras expressas nas capas de jornais, seja na forma textual ou a partir de recursos imagéticos.
Prado e Baron (2010) conceitualizam “figuras” como inscrições textuais (verbais/visuais) que podem ser referidas a um dos cinco sentidos, agindo como representações ligadas à perceção, sendo que a narrativa jornalística tem na figuratividade um dos pilares para a criação do efeito de realidade e de veridicção. Evidentemente, a imagem exerce uma função figurativa fundamental na construção da narrativa jornalística, sendo, como apontado por Charaudeau, “ao mesmo tempo um testemunho da realidade em difração e um espelho de nós mesmos” (Charaudeau, 2012:257), trazendo consigo efeitos de transparência e evocação.
No primeiro efeito, pode-se apontar que a imagem figura a realidade tal como ela é, trazendo uma sensação de testemunho do facto, enquanto no segundo a imagem se relaciona com a memória pessoal e coletiva, resgatando lembranças de experiências passadas a partir de outras imagens. Os efeitos de transparência e evocação se correlacionam, pois se pode concomitantemente interpretar e sentir a imagem, dependendo da forma pela qual ela é mostrada e da própria história individual e coletiva do interlocutor (Charaudeau, 2012).
O autor francês também se refere ao conceito de “Imagem-sintoma”, ou seja, uma imagem que remete a outras imagens, seja por analogia formal ou por intermédio de discurso verbal, sendo dotada de forte carga semântica, necessitando – para que possa ser considerada uma imagem-sintoma – o preenchimento de aspetos tocantes ao indivíduo, como dramas, alegrias, sofrimentos ou nostalgia de um passado, transportando a imaginários profundos da vida, tendo uma aparição recorrente, tanto na história quanto no presente, fixando-se na memória e tonando-se um instantâneo. As imagem-sintomas são, portanto, carregadas semanticamente, simplificadas e fortemente reiteradas, ocupando um lugar na memória coletiva, como sintomas de acontecimentos dramáticos.
Descrição dos dados
Para compreender como as imagens trazidas pelos jornais em suas montras figuram a narrativa sobre a pandemia de Coronavírus, ao longo da estação pandémica, observou-se as capas do Correio da Manhã, Jornal de Notícias e o Público entre 3 de março de 2020 e 12 de março de 2020 – período entre a notificação da confirmação do primeiro caso de Covid-19 e o decreto do estado de alerta em Portugal – o que significaria um primeiro ciclo, e de 13 de março de 2020 até 18 de março de 2020 – período entre o decreto do estado de alerta até a confirmação do estado de emergência pela assembleia legislativa portuguesa – um segundo ciclo (ver figuras acima).
Observamos no primeiro ciclo que: em doze quadros sobre Coronavírus, o Correio da Manhã utilizou quatro recursos imagéticos para estampar sua montra com a pandemia, equivalente a 1/3 do total; o Jornal de Notícias serviu-se deste recurso em pouco mais da metade das ocorrências (seis imagens em 11 quadros); e o Público foi o jornal que mais empregou imagens para figurar a pandemia em sua montra, estando elas presentes em 2/3 dos quadros (oito imagens em doze quadros).
No segundo ciclo observou-se um uso mais intensivo deste tipo de recurso entre os três jornais: 100% no Correio da Manhã (seis imagens em seis quadros), 2/3 no Jornal de Notícias (seis imagens em nove quadros) e 71% no Público (cinco imagens em sete quadros).
Buscando compreender as propriedades da narrativa noticiosa nas figuras contidas no corpus de análise, utilizou-se uma análise de enquadramento operacionalizada a partir da análise de conteúdo, como sugerido em Banone (2017). Desta forma as imagens foram codificadas em quatro categorias:
- “combate ao vírus”: imagens que figuram o combate direto contra o vírus.
- “urbe”: imagens que trazem a figuração de uma nova paisagem nos centros urbanos.
- “personalização”: imagens que associam questões relacionadas à pandemia a determinadas personalidades.
- “corpo viral”: imagens que procuram representar o vírus fisicamente.
Combate ao vírus – da demonstração do facto à representação dramática.
Na categoria combate ao vírus, foram codificadas sete imagens (uma no Correio da Manhã, quatro no Jornal de Notícias e duas no Público). Observa-se nestas figuras uma dupla tendência nas suas utilizações: uma que visa representar factualmente as ações de combate à pandemia e outra que representa este ’combate’ a partir da dramaticidade do indivíduo que representa o sujeito coletivo.
O Público representou este ‘combate’ exclusivamente na demonstração da factualidade, apelando para o efeito de realidade a partir da foto dos trabalhadores de limpeza realizando uma ação de desinfeção das carruagens do metropolitano de Lisboa, ou do bloqueio montado na estrada que dá acesso à fronteira com Espanha.
Ainda que também tenha feito uso de figuras dramáticas, o Jornal de Notícias também optou pela representação da realidade ao figurar a factualidade com fotografias de uma operação rodoviária da GNR e outra de um carro da polícia espanhola com um letreiro luminoso em que se pode ler “combatam el virus en casa”.
A dramatização do combate à pandemia é particularmente curiosa: parte-se do ativar da memória individual e coletiva da representação de dramas já vivenciados e representados em outros contextos, utilizando a imagem de indivíduos devidamente uniformizados para a ação de “combater a pandemia” figurando grupos sociais (trabalhadores da saúde, cidadãos comuns e militares) como a foto do cidadão comum protegido por uma máscara e a da trabalhadora da saúde utilizando equipamento especial de proteção individual – apenas com os olhos azuis à mostra – estampadas nas capas do Jornal de Notícias.
Ainda mais curiosa é a representação feita pelo Correio da Manhã, que ilustrou uma determinada publicação com a fotografia de um militar com roupa camuflada e armado, reforçando um discurso militarizado de combate à pandemia, ainda que o Coronavírus, obviamente, não possa ser enfrentado com uso de armamento pesado ou com ações militares convencionais de guerra.
A construção da nova “urbe”
O meio urbano, pelo menos numa perspetiva ocidental, costuma ser representado por imagens de aglomerações, de diferentes faces homogeneizadas na noção de multidão, no movimento da cidade pulsante que não para. Ao retratar locais comuns, agora vazios, os media buscam imagens-sintomas que trazem consigo o choque, justamente por figurarem o oposto do que geralmente é retratado da paisagem urbana, demonstrando que algo está fora de ordem, algo que, ao se conectar com o contexto vivido reforça o sentimento de ausência, dando força a imagens que não teriam o mesmo significado em contextos de “normalidade”.
Tanto o Jornal de Notícias quanto o Público exploraram esta figura de forma semelhante. O JN, por exemplo, utilizou imagens de um portão da Universidade do Minho fechado e de uma paisagem urbana esvaziada, onde se via apenas dois homens realizando atividades físicas.
O Público ainda optou por representar a quebra da normalidade do meio urbano com a figuração de uma multidão em deslocamento a usar máscara, o que seria uma cena já comum em alguns países no contexto oriental. No entanto, retratou principalmente o vazio urbano, nesta refiguração da urbe, com imagens, por exemplo, de um homem fazendo bolhas de sabão no Terreiro do Paço praticamente vazio e do estacionamento pouco movimentado de uma escola de Felgueiras, que fora fechada em consequência da Covid-19. Nota-se que esta figura também representa o factual, demonstrando uma “nova” paisagem do meio urbano.
Um vírus intimizado e personalizado
Também é recorrente, nos três jornais pesquisados, um processo de personalização da pandemia de Coronavírus – ainda que de formas diferentes – indo das personalidades do mundo do entretenimento à heroificação do indivíduo sobrevivente da doença, passando pelo universo da política.
O Correio da Manhã é o jornal que mais fez uso de imagens personalizadas na figuração da pandemia, utilizando-as sete vezes e com presença em todos os quadros analisados que possuíam recursos imagéticos. As personalidades retratadas são prioritariamente associadas com o entretenimento mediático, como o jogador de futebol Cristiano Ronaldo, o técnico de futebol Jorge Jesus e o ´Chef` e apresentador de programa televisivo, Ljubomir, dando relevância a aspetos da esfera privada dessas pessoas, independentemente da banalidade representada. Outras “personalidades” que figuraram nas capas deste jornal foram: Adriano Maranhão – primeiro português infetado – na sua chegada ao aeroporto, figurado quase que como rock star, um “herói” que sobreviveu à contaminação de Coronavírus de dentro do iate infetado, e o presidente da república Marcelo Rebelo de Sousa – neste caso em referência ao facto do seu isolamento sob suspeita de uma possível contaminação de Coronavírus.
Tanto o Jornal de Notícias (JN) como o Público personalizaram este facto social a partir das ações políticas relacionadas ao enfrentamento da pandemia. Enquanto o JN retratou o Presidente da República e o Primeiro Ministro, conectando-os às ações (entre méritos e responsabilizações) e tornando-os protagonistas deste processo, o segundo representou as ações políticas através da imagem das agentes públicas diretamente responsáveis pelas ações de saúde do governo: a Ministra da Saúde, Marta Temido, e a Diretora Geral da Saúde, Graça Freitas, duas vezes retratadas juntas.
Um vírus que ganha corpo
Na narrativa sobre a pandemia de Coronavírus há um evidente protagonista, o próprio vírus. No entanto, para que assuma este papel, é preciso que ele seja visto. Este não é um processo simples; para construir a figura do vírus, é preciso que ele adquira um corpo reconhecível, o que se torna mais complexo quando se leva em conta que este nem sequer poderia ser visto ao microscópio comum e, stricto sensu, não é um ser vivo, é “apenas” um conjunto de moléculas orgânicas.
Num primeiro momento o vírus precisou ser retratado a partir de uma imagem de microscópio eletrónico, para então, sequencialmente, ser representado a partir de ilustrações gráficas, pelo que podemos dizer que é quando adquire uma forma física. A partir daí torna-se visível, assimilável dentro do imaginário coletivo, podendo adquirir vida e passar a figurar ações.
De forma semelhante, tanto o Jornal de Notícias como o Público utilizaram esta figura nas suas capas, aparecendo no JN em quatro quadros e no Público, em cinco. Assim, o Coronavírus passa a ocupar o espaço físico representado sobre fundo branco, ou até mesmo na ilustração de um campo de futebol, como estampado no Jornal de Notícias. No Público, o vírus “transgride” a barreira física e aparece ilustrado por cima de um muro ou adquirindo pernas, braços e personalidade para, numa ilustração satírica, distribuir infeção de cima de um autocarro, contaminando a cidade.
Considerações finais
Charaudeau (2012) aponta que a imprensa escrita tem suas próprias exigências de visibilidade, legibilidade, inteligibilidade e dramatização (menos admitida). É notório que ao referir-se às capas dos jornais enquanto montras, evidencia-se principalmente a visibilidade e a dramatização, considerando a maneira como os jornais montam as suas primeiras páginas, de forma a anunciar e apresentar a notícia, bem como atrair a atenção do leitor para o seu produto.
Os recursos imagéticos adotados são fundamentais neste processo pois são eles que, muitas vezes, atraem a vista do leitor e, a partir de suas figuras, o levam para um campo de referências sociais e pessoais daquilo que pode ser percebido como o facto vivido ou a emoção sentida.
As lógicas de fragmentação e personalização também podem ser percebidas a partir da escolha das imagens trabalhadas por cada tipo de montra jornalística. Neste sentido, não é exatamente surpreendente que o Correio da Manhã, dentro da montra de saldo, retrate, maioritariamente, personalidades – preferencialmente relacionadas com o campo do entretenimento – nos seus quadros sobre a pandemia, enquanto o Jornal de Notícias e o Público – na montra de diversidade e de produto, respetivamente – procurem, principalmente, imagens que figurem o factual ou referências mais complexas no sentido de evocação.
Bibliografia
Charaudeau, P. (2012). Discurso das mídias. 2.ed. São Paulo. Contexto
Couldry, N. e Hepp, A. (2018) The continuing lure of the mediated centre in times of deep mediatization: Media Events and its enduring legacy. Media, culture and Society. 40(I):114-117
Harcup, T. e O´Neill, D. (2001) What Is News? Galtung and Rugerevisited. Journalism Studies. 2(2): 261-280
Mesquita. M (2003). O quarto equívoco: o poder dos medias na sociedade contemporânea. Coimbra. Edições Minerva Coimbra
Shoemaker P.J. (2006). News and newsworthiness: A commentary. Communications 31:105-111
Silva, G. (2005). Para pensar critérios de noticiabilidade. Estudo em Jornalismo e Mídia 2(1):95-107
Traquina, N (2005). Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são (Vol. I). ed. 2. Florianópolis. Editora Insular.
Notas