Analogia das montras e tensão permanente no interior do campo jornalístico
Por Livino Neto (texto) e Décio Telo (edição e visualizações)
No texto anterior foi argumentado como os conceitos de evento de media (Couldry e Hepp, 2018) e acontecimento jornalístico (Mesquita, 2003) são relevantes para a compreensão da narrativa jornalística sobre a pandemia de Coronavírus na imprensa portuguesa – tendo em vista aqui os três principais jornais diários generalistas com edição em papel.
Vimos, igualmente, como esses conceitos podem ser articulados a partir da percepção da composição das capas destes órgãos de comunicação social, possibilitando a compreensão de como estes descrevem a realidade e atuam no sentido de orientar moralmente o público, assim como se articulam os interesses privados e públicos na tensão permanente no interior do campo jornalístico (Traquina, 2005).
Neste sentido esboçou-se a construção da metáfora da montra jornalística que, evidentemente, pode ser interpretada num (bom) sentido provocativo, dentro da contradição entre interesse comercial e interesse público que permeia cada um desses jornais.
No dia 6 de maio de 2020, o líder do tradicional PSD, Rui Rio, criticou os apoios previstos à comunicação social propostos pelo governo, do também tradicional PS de António Costa. Nesta crítica, Rio afirmou que “as empresas de comunicação social são empresas iguais às que fabricam móveis, sapatos, têxteis”.
Ora, ainda que se critique a afirmação, é preciso reconhecer que quanto mais os interesses comerciais se sobrepõem nesta disputa permanente no campo jornalístico, e quanto mais a notícia é tratada como uma simples mercadoria, mais correta é a frase. Compreendendo desta forma, não seria absurdo, então, visualizarmos as capas dos jornais como montras jornalísticas, compostas tais quais as lojas de vestuário, procurando atrair a atenção do consumidor para aspetos marcantes de seus produtos durante a estação da moda.
Numa observação exploratória das capas dos jornais ‘Correio da Manhã’, ‘Jornal de Notícias’ e ‘Público’, compreendendo as datas de 3 de março de 2020 e 12 de março de 2020 – período entre a notificação da confirmação do primeiro caso de Covid-19 e o decreto do estado de alerta em Portugal – o que significaria um primeiro ciclo, ou o início da “estação pandémica” nos jornais, notou-se a composição de três modelos de montras: montra de saldos; montra de diversidade; montra de produto.
.Na montra de saldos, busca-se promover a diversidade de produtos a um baixo custo, apelando ao interesse do consumidor pela promoção e o acesso a um produto popular; a montra de diversidade já seria composta buscando promover a diversidade de peças que compõem a coleção da estação; enquanto a montra de produto busca promover um único – ou poucos – artigo(s), apostando na sua qualidade e relevância na estação. Esta analogia procura representar três formas de compreender a notícia, em diferentes abordagens de mercado, a partir do conflito interior que marca o campo jornalístico.
Para observar as montras, teve-se em conta a quantidade de chamadas para notícias sobre a Covid-19, normalmente agrupadas em quadros nestes jornais, a área física que ocupavam na página e a relevância hierárquica diante das demais notícias (percebendo se correspondiam à manchete, ao centro ou à periferia da primeira página).
Também se considerou a presença de etiquetas de socialidade, a partir da adaptação do conceito de Charaudeau (2012). Estas seriam marcas deixadas na composição textual das chamadas, buscando a orientação da cognição do leitor para um lugar comum de identificação da notícia, a partir de uma percepção coletiva do facto. Considerou-se também a relação entre as etiquetas de socialidade e os valores-notícia proposto por Harcup e O´Neill (2001) e a própria conceptualização de noticiabilidade (Shoemaker, 2006; Silva, 2005; Traquina, 2005).
A montra de saldos no Correio da Manhã
Considerando que os dados recolhidos cobrem um determinado período de tempo e se referem exclusivamente aos conjuntos de chamadas relacionadas com a pandemia, pode-se apontar que, na estação pandémica, o Correio da Manhã tende a uma composição de montra de saldo, sendo o diário que mais trabalhou com chamadas diferentes dentro dos agrupamentos referentes ao Coronavírus, o que indica a intenção do jornal de chamar a atenção do leitor para a diversidade de textos sobre a pandemia nas páginas interiores.
Ainda que tenha utilizado muitas chamadas, este acontecimento teve um destaque espacial menor do que nos outros dois impressos, ocupando um espaço físico que variou entre ¼ de página e meia página, ainda que fosse, na maioria das vezes, o assunto de manchete na capa do jornal.
Possivelmente almejando um número ampliado de leitores, numa espécie de catch-all, o jornal utilizou etiquetas de socialidade mais diversas e dispersas, convergindo com elementos diversos de valor-notícia, como a correlação do Coronavírus com o futebol e o mundo das celebridades. Também se evidencia a utilização de enquadramentos compostos pela designação da doença por referências que pudessem caracterizá-la, como o uso da polémica expressão “Vírus da China”.
Jornal de Notícias: montra de diversidade
O Jornal de Notícias convergiu para a montra de diversidade, destacando-se pelo amplo uso de chamadas adicionais ao título principal, aproximando-se, proporcionalmente, ao utilizado pelo Correio da Manhã, mas garantindo uma maior relevância de área física e espaço hierárquico ao tema da pandemia.
As etiquetas de socialidade também são diversificadas neste jornal, todavia mais concentradas no entorno de determinados temas. Apesar de procurar uma designação descritiva da doença, prioriza a sua identificação pelo nome do vírus. As etiquetas de socialidade encontradas enfatizam, principalmente, aspetos relativos ao sistema de governança português e ao estado da economia, ainda que também apresente etiquetas de socialidade relacionadas com desporto e com substantivos tipológicos, como no caso “Balanço do dia”.
Montra de produto no Público
Já o Público esteve mais próximo de uma montra de produto, destacando-se por um uso comedido de chamadas adicionais ao título principal, buscando, possivelmente, enfatizar determinados conteúdos da edição do dia e acontecimentos específicos, ainda que direcionando ao tema da pandemia uma área física e hierárquica semelhante às do Jornal de Notícias.
As etiquetas de socialidade utilizadas por este jornal apresentaram uma menor diversidade e uma maior concentração em determinados temas, fazendo ainda alguma alusão descritiva da doença. No entanto, prioriza a construção de uma socialidade referente, principalmente, ao nome do vírus. Nota-se ainda um uso relevante de etiquetas de socialidade referentes ao conteúdo produzido pelo próprio diário a partir de adjetivos classificatórios (“especial”, “destaque”).
Notas finais
É de se supor que, no que tange ao conflito interno e permanente do campo jornalístico, a montra de saldo aproxime a narrativa do jornal aos interesses comerciais, enquanto a montra de produto a aproxime da ideologia profissional do jornalismo (Traquina, 2005), ocupando a montra de diversidade um lugar intermediário nesta disputa.
Ainda que esta observação preliminar das capas dos jornais permita encontrar pistas sobre a narrativa dos media durante a pandemia e que a analogia das montras seja didática, especialmente na caracterização da disputa interna do campo jornalístico, deve-se ainda verificar o desenvolvimento da composição das capas dos jornais, ou das montras, por um período mais prolongado da cobertura sobre a pandemia, observando os enquadramentos e discursos contidos nos textos, bem como compreender como cada jornal mobiliza seus recursos imagéticos na construção das suas capas (tema que será abordado no próximo texto desta série).
NOTA: Esta série de 3 textos em formato blogue, traduz a apresentação de uma iniciativa de investigação científica do MediaLab CIES-Iscte inscrita no projeto “Barómetro de Notícias 2020-2021” que será publicado integralmente em relatório no formato PDF, neste site. O primeiro texto está disponível aqui.
Este projeto visa o estudo da cobertura jornalística da pandemia da Covid-19 nos principais meios de comunicação social ditos tradicionais – imprensa diária em papel e noticiários televisivos. Numa primeira fase o estudo compreende o período entre a notícia do primeiro caso em Portugal e o fim do estado de emergência em Portugal, entre 2 de março de 2020 e 2 de maio de 2020.
Bibliografia
Charaudeau, P. (2012). Discurso das mídias. 2.ed. São Paulo. Contexto
Couldry, N. e Hepp, A. (2018) The continuing lure of the mediated centre in times of deep mediatization: Media Events and its enduring legacy. Media, culture and Society. 40(I):114-117
Harcup, T. e O´Neill, D. (2001) What Is News? Galtung and Rugerevisited. Journalism Studies. 2(2): 261-280
Mesquita. M (2003). O quarto equívoco: o poder dos medias na sociedade contemporânea. Coimbra. Edições Minerva Coimbra
Shoemaker P.J. (2006). News and newsworthiness: A commentary. Communications 31:105-111
Silva, G. (2005). Para pensar critérios de noticiabilidade. Estudo em Jornalismo e Mídia 2(1):95-107
Traquina, N (2005). Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são (Vol. I). ed. 2. Florianópolis. Editora Insular.