Por Eduardo Acquarone* e Nuno Palma
Janeiro de 2020. Enquanto o Covid-19 se alastra pela Europa, surgem os primeiros relatos de que o avanço do vírus está relacionado com a expansão das novas redes 5G de comunicação. Relatos falsos, obviamente, o que não impede a sua propagação. Primeiro em grupos já existentes no Facebook contrários ao 5G. Depois em posts dentro de grupos com temáticas muito diferentes, mas que andam sempre juntos quando o assunto é desinformação científica.
A primeira mensagem que ligava o Covid-19 ao 5G dizia: “5G é lançado em Wuhan semanas antes do aparecimento do Coronavirus”. No YouTube, um vídeo (agora indisponível), alertava que o navio Diamond Princess, cujos passageiros tiveram que ficar em quarentena, foi afetado pelo vírus porque usava 5G para se comunicar.
No início de abril, a teoria saltou dos grupos de discussão online para a cobertura policial britânica. Incidentes foram relatados em Liverpool, Belfast e Birmingham, e depois em outras cidades. Em todas, a ação era similar: postes com equipamentos de 5G foram queimados e os equipamentos, danificados. Num vídeo gravado em Belfast é possível ouvir vozes que dizem “Fuck 5G” e “Viva La Revolución”.
A imprensa deu grande destaque para os ataques, especialmente quando eles começaram a se espalhar – mais de 20 ataques foram registados no Reino Unido durante o fim-de-semana da Páscoa. Incidentes isolados também aconteceram na Irlanda, Bélgica, Holanda e Chipre.
Curiosamente, conforme o Guardian relata em reportagem no dia 6 de abril, boa parte dos equipamentos atacados na Grã-Bretanha não foram de 5G, ainda raros no país, e sim os dos antigos padrões 3G e 4G.
No começo de maio, o YouTube apagou o canal de David Icke, um ex-comentarista de futebol que tinha uma página muito popular dedicada a várias teorias de conspiração. A plataforma de vídeos já havia sido alertada quase um mês antes pela BBC sobre o conteúdo conspiratório promovido por Icke.
5G no Facebook
Uma análise de todos os posts com menção à tecnologia 5G feitos no Facebook em 2020, feita especialmente para este artigo, mostra que as interações na rede social tiveram um pico nos primeiros dias de abril (ver figura 1), período em que aumentaram também as reportagens sobre a ligação entre 5G e Covid-19 e os ataques aos equipamentos de infraestrutura.
Uma análise sobre o conteúdo dessas mensagens mostra que, entre as três mais virais, as duas primeiros são mensagens cujo tema principal – embora com mensagens distintas – são as teorias que relacionam o 5G com a pandemia do novo coronavírus (ver figura 2).
Em primeiro lugar está um vídeo do artista italiano Gian Marco Saolini. No vídeo, que teve 3,47 milhões de visualizações e mais de 120.000 partilhas, ele apresenta o 5G como a causa da atual pandemia. Posteriormente Saolini assumiu ter criado o vídeo como uma forma de alerta para o problema da propagação de informação falsa nas redes sociais. Já em 2019 o mesmo Saolini tinha usado a mesma lógica para publicar um vídeo onde, fingindo ser um operário a residir em França, se assumia como culpado do incêndio na catedral de Notre-Dame.
O segundo post com mais interacções é um alerta da Organização Mundial de Saúde esclarecendo não existir qualquer tipo de relação entre a tecnologia 5G e a atual pandemia.
E o terceiro é de uma empresa de tecnologia promovendo um prémio da indústria de telecomunicação.
Portugal e o 5G
Em Portugal não há antenas de 5G, como bem lembram Paulo Pena e Ingeborg Eliassen em um longo artigo no Diário de Notícias. Mesmo assim já existem grupos no Facebook em português para “combater” não o Covid-19, mas sim sua conexão com o 5G.
No entanto, uma análise das interações feitas neste ano no Facebook nos grupos portugueses que tem o 5G como temática (figura 3) mostra que, apesar de picos de interações em fevereiro e em abril, o número volta rapidamente ao patamar original.
Nos posts com mais menção à tecnologia 5G em Portugal (figura 4), observamos que uma análise do jornalista Camilo Lourenço sobre o leilão do Estado para as frequências 5G ocupa a primeira posição. Em segundo lugar está um vídeo publicado pela página brasileira Mistérios do Mundo onde são analisados os potenciais riscos para a saúde da tecnologia 5G, sem nunca referir o novo coronavírus. Tal como na análise global, também em Portugal a terceira posição é ocupada por uma publicação de uma empresa do sector tecnológico promovendo o 5G.
Teorias conspiratórias
Já se sabe que fake news e outras formas de desinformação não surgem apenas de modo espontâneo, mas também são criadas por governos, grupos políticos, partidários e de interesses.
A agência de verificação de factos britânica Full Fact diz que o 5G já era assunto de desinformação pelo menos um ano antes do Covid-19 aparecer, inclusive com a destruição de alguns postes e equipamentos. E a ligação de grupos anti-5G com grupos anti-vacinas também já existia. “Comunidades anti-vacinas são frequentemente abertas à ideia do 5G ser perigoso. Esses grupos, que operam contas conectadas no Instagram, combinam-se com contas que promovem nutrição e saúde alternativas para advogar conceitos como a dieta alcalina. Eles tendem a ser céticos à medicina moderna e ao que chamam de ‘super-medicação’, e algumas vezes esse conteúdo salta para plataformas maiores, como o Goop de Gwyneth Paltrow”, escreve Grace Rahman no Full Fact.
Agora, o mesmo processo aconteceu. Celebridades como o rapper Wiz Khalifa ou os atores John Cusak e Woody Harrelson endossaram a teoria conspiratória que ligava o avanço do Covid-19 ao do 5G e, com isso, aumentam a propagação do assunto assim como sua cobertura pelos media.
Importante notar que não há uma única vertente da teoria conspiratória que liga 5G ao Covid-19. Várias versões convivem nos grupos digitais: o vírus existe mas o 5G o faz pior; o vírus não é a causa da doença e sim o 5G; que o Covid-19 não existe e que os governos estão usando as quarentenas para secretamente instalarem a infraestrutura do 5G. Qual das versões “cola” é irrelevante. Basta que uma delas funcione para o sistema de crenças de um indivíduo.
Com isso, a teoria da conspiração, qualquer que seja a vertente, consegue seu objetivo: romper as bolhas dos grupos de Facebook e das recomendações do YouTube e saltar para grupos maiores, mais mainstream. Nesses grupos, algumas pessoas têm maior imunidade e conseguem identificar e separar notícias falsas das reais, ou aquelas que ainda estão sendo investigadas. Mas para muitas pessoas a centelha da dúvida é inserida, de maneira discreta, para um dia aflorar. Tal como um vírus.
Em Portugal existem alguns grupos de Facebook dedicados a combater a tecnologia 5G, sendo o grupo “Stop 5G Portugal” o mais relevante, contando com 5.600 membros (figura 6). Nestes grupos, além de notícias de meios de comunicação tradicionais que colocam em causa a segurança desta tecnologia, são partilhados vídeos e artigos de teor mais conspirativo. Durante a elaboração deste artigo, os grupos aqui referidos passaram a ser privados, impossibilitando uma análise mais detalhada dos conteúdos ali partilhados.
No contexto português, existem ainda duas outras páginas de Facebook que se dedicam a fazer oposição à disseminação das redes 5G em Portugal. Como é possível observar na figura 7, as publicações destas páginas têm muito pouco alcance, tendo gerado um baixo número de interacções entre os utilizadores do Facebook.
Entre os 20 posts relacionados com o tema 5G com mais interações encontramos algumas publicações que relacionam esta tecnologia e a pandemia de coronavírus com um alegado plano da criação de uma sociedade “totalitária”.
Para alguns orgãos de comunicação, a falta de notícias sobre seu foco principal – essencialmente futebol, no caso do jornal desportivo O Jogo – fê-los aventurarem-se por outros caminhos, talvez em busca de relevância ou cliques digitais. Só isso pode explicar o artigo intitulado “E se a culpa da novo coronavírus (sic) for, afinal, da rede 5G?“, em que o jornal usa uma frase dita pelo pugilista Amir Khan como desculpa para discutir a origem da pandemia. A matéria d’O Jogo não chega a lugar algum, mas deixa a pergunta no ar, como se fosse passível de interpretação, tal qual um lance duvidoso de uma partida de futebol.
Lançamento adiado
Curiosamente, o Abacus News (um projeto digital do South China Morning Post, o mais tradicional jornal em língua inglesa de Hong Kong e que hoje pertence ao grupo Alibaba) informa que as teorias de conspiração sobre a ligação entre o 5G e o Covid-19 não chegaram à China. Com um ambiente jornalístico altamente monitorado pelo governo e sem acesso às principais redes sociais e de busca ocidentais (Google e Facebook, por exemplo, são vetados no país), 5G é uma tecnologia apresentada nos media chineses como algo que irá desenvolver tudo, da Internet das Coisas a carros autónomos.
O artigo do Abacus aponta alguns responsáveis pela disseminação da teoria no Ocidente: a rede de televisão russa RT (Russia Today) e o site hiper-partidário norte-americano Infowars. Rumores oriundos dos Estados Unidos podem, inclusive, estar ligados ao topo da Casa Branca. O New York Times mostra em reportagem recente como funcionários do governo Trump pressionaram agências de inteligência norte-americanas para conseguirem evidências – baseadas em teorias conspiratórias – de que o novo coronavírus teve como origem um laboratório do governo chinês em Wuhan.
Apesar de todas as teorias conspiratórias, é quase certo que Covid-19 terá uma grande influência no lançamento das redes de 5G em boa parte do mundo. A gigante chinesa Huawei dá como certo que o início da rede na Europa e na Grã Bretanha vai ser adiado por causa da pandemia, já que em vários países (incluindo Portugal) os leilões da frequência de operação do 5G foram adiados.
A batalha, inclusive da (contra) informação, está longe de terminar.
*) Eduardo Acquarone é doutorando em Ciências da Comunicação no Iscte – Instituto Universitário de Lisboa com a tese “Imerso na notícia: Como a Realidade Virtual pode ajudar o jornalismo a solucionar problemas reais”. Uma versão condensada deste artigo foi originalmente publicada no Sapo.
Imagem de destaque: “Coronavirus in Britain”, LUSA/EPA/NEIL HALL