Narrativas imersivas: o que está por vir no “novo normal”

Por Eduardo Acquarone, Doutorando em Ciências da Comunicação*
Imagem digital: Experiência imersivas se expandem e começam a chegar aos telemóveis / Divulgação: The Enemy/NFB
Experiências imersivas expandem-se e começam a chegar aos telemóveis (fonte: The Enemy/NFB).

A primeira onda do Covid-19 fez com que todos nos recolhêssemos e começássemos a testar, na prática, o que se discute teoricamente há anos: ensino à distância, teletrabalho. E também situações que, até então, só faziam parte de romances distópicos, como o “distanciamento social”. Ainda não há um consenso, mas parece provável que a nova sociedade, que virá, incorpore de maneira permanente alguns desses novos hábitos.

Os media também passaram por uma revolução em semanas, especialmente em relação aos hábitos de consumo e ao nível de confiança: as audiências dos canais de TV, especialmente os de notícias, explodiram e houve um grande aumento de confiança nos media tradicionais face às informações disponíveis em medias sociais; ao mesmo tempo, pequenos jornais e sites locais, já pressionados pela diminuição da publicidade, talvez não resistam e desapareçam.

Em termos de comunicação, precisamos lidar com um paradoxo que tem ficado cada vez mais claro: a tecnologia consegue preencher algumas funções, mas ainda necessitamos de contacto humano, algo que nenhuma chamada via Skype ou Zoom consegue preencher.

No caso específico do jornalismo, também é preciso não perder a conexão com as pessoas, mesmo através de aparatos super tecnológicos. É nessa “linha estreita” que trabalham alguns artistas e produtores audiovisuais. As experiências já realizadas ainda têm pequena escala (de distribuição) e alto custo. Mas apontam um caminho altamente promissor.

TERMINAL 3: RELAÇÃO DE PODER

Fotomontagem: Em "Terminal 3" é possível entrevistar um holograma em Realidade Aumentada / Divulgação: 1RIC
Em “Terminal 3” é possível entrevistar um holograma em Realidade Aumentada (fonte: 1RIC).

Em Terminal 3, o diretor paquistanês Asad J. Malik coloca o público numa posição incomum. Ao colocar os óculos de realidade aumentada, a pessoa se torna um funcionário de imigração norte-americano, cuja função é permitir ou não a entrada de passageiros que embarcam em Abu Dhabi.

Na experiência, a pessoa começa uma conversa com uma figura holográfica, quase fantasmagórica, que vai ganhando forma à medida que a conversa prossegue. Todos os hologramas da experiência são baseados em pessoas reais, portanto as respostas são também reais. E você, transformado em interrogador, tem que decidir: essa pessoa deve entrar nos Estados Unidos ou não?

O facto dos hologramas representarem viajantes muçulmanos é mais um fator que precisa ser levado em conta por quem faz a experiência. Ou isso não é relevante? A resposta está na mente de cada um, e isso já é uma mudança enorme em relação aos media não-interativos e não-imersivos.

“Terminal 3”, apresentado pela primeira vez no Festival de Tribeca nos Estados Unidos em 2018, ainda é uma experiência difícil de ser vista – é necessária uma sala cenográfica e equipamentos caros que precisam de ser calibrados para que a ilusão da realidade aumentada funcione de maneira adequada.

IMERSÃO EM CASA

Mas em breve experiências parecidas poderão ser feitas dentro de casa. O novo iPad lançado pela Apple em março de 2020 vem com um novo scanner Lidar, uma tecnologia que permite mapear o ambiente onde se está. A partir daí é possível inserir objetos digitais que interagem com esse ambiente. Alguns analistas apostam que a tecnologia será incorporada, logo de seguida, também nos iPhones.

Por enquanto, aplicações com narrativas em Realidade Aumentada tornar-se-ão relativamente comuns nas lojas da Apple e Google. Os objetos digitais são posicionados em um ponto específico, e já propiciam uma sensação de imersão, mas ainda não conseguem adaptar-se ao ambiente específico. Das aplicações dessa “primeira geração” aumentada destaco um, que foi concebido tanto para Realidade Virtual (em locais específicos com tracking de movimento) quanto para Realidade Aumentada.

The Enemy surgiu no final de 2017, concebido pelo fotógrafo de guerra Karim Ben Khelifa. Desenvolvido durante quatro anos e com investimento de 500 mil dólares, a narrativa tem como objetivo colocar o espectador entre dois combatentes que estão em campos opostos – um soldado israelita e outro palestino; dois combatentes na guerra civil do Congo; e dois membros de gangues rivais das ruas da capital de El Salvador. A reação esperada por Khelifa é que o público veja não apenas as diferenças entre os combatentes, mas principalmente as semelhanças.

Ao ser lançado, The Enemy foi visto em exposições presenciais através de óculos de Realidade Virtual. No entanto, também foi lançada uma versão para telemóveis em Realidade Aumentada. Nesta versão, os inimigos podem ser posicionados dentro de casa, em ambientes muito mais íntimos e pessoais. Isso faz com que a experiência seja percebida de forma diferente? São perguntas que os criadores de experiências como estas precisam fazer e é um tema que precisa ser estudado com profundidade.

A TRANSIÇÃO: DO MUSEU PARA QUALQUER LUGAR

Com novos recursos tecnológicos e com custos decrescentes, experiências que há pouco tempo eram consideradas revolucionárias começam a chegar à mais democrática das plataformas digitais: os telemóveis.

É o caso da empresa StoryFile, criada a partir de uma experiência de holografia produzida pela Fundação Shoa. A fundação, criada por Steven Spielberg após ter dirigido Schindler’s List, começou com o intuito de preservar entrevistas em vídeo de sobreviventes e testemunhas do Holocausto.

Há alguns anos abriu-se a possibilidade de capturar esses depoimentos num formato mais imersivo do que o vídeo. Os sobreviventes foram convidados a responder a uma série de perguntas – não apenas sobre o período da Guerra ou do Holocausto, mas também histórias pessoais antigas e recentes. As gravações ocorreram numa redoma coberta de câmeras e luzes, que capturaram tudo de forma volumétrica – em 3D. No total, foram feitas cerca de duas mil perguntas para cada entrevistado, com cada gravação se estendendo por uma semana. Esses depoimentos começaram a ser apresentados em museus nos Estados Unidos a partir de 2017, em ecrãs especiais e também em auditórios. E através de uma tecnologia de reconhecimento de voz e Inteligência Artificial, é possível interagir com os vídeos – de uma certa forma, conversar com as pessoas na tela.

A tecnologia de gravação permite que todos os depoimentos sejam transformados, um dia, em hologramas volumétricos – hoje o que é apresentado apenas simula um holograma através de ecrãs e espelhos. Mas o resultado já é tão impressionante que não é incomum que, em algum momento da “conversa”, o interlocutor se esqueça que está falando com uma gravação.

Dos museus, a ideia passou para os telemóveis, com o lançamento da app da StoryFile, criada pela mesmo equipa que desenvolveu o projeto original. Hoje é possível fazer perguntas para dezenas de pessoas através da aplicação. Em breve, a empresa promete que cada um poderá gravar seu próprio testemunho, abrindo a possibilidade da memória digital de todos fique acessível em forma de narrativa interativa.

NARRATIVAS IMERSIVAS E A COVID-19

E se a pandemia de Covid-19 traz um alto grau de insegurança a todos, ela também trouxe uma necessidade de mudança instantânea. Para pessoas e empresas.

A startup Spaces, focada em espaços físicos para Realidade Virtual, logo lançou uma aplicação (ainda em beta) para conectar o “mundo imersivo” às chamadas de Zoom, Skype e Hangouts. Resta ver se esse mercado está pronto para essa transformação, já que o número de headsets de Realidade Virtual na mão do consumidor final ainda é pequeno. Prova de que essa indústria ainda não descolou é que os encontros virtuais dos membros da AR/VR Association ainda são feitos, por regra, com o uso de plataformas de vídeo, e não com o uso de ferramentas mais imersivas. Mas ao menos há uma tentativa para se “aproveitar o momento”.

A reação é diferente nas redações jornalísticas espalhadas pelo planeta. Assoladas com a cobertura de uma das maiores histórias do século, tendo que mudar a gestão de pessoas quase que da noite para o dia, e com o número de repórteres e editores reduzido por causa de preocupações com a saúde, nenhuma empresa lançou qualquer produto jornalístico imersivo para auxiliar no entendimento da crise. As características atuais das narrativas imersivas não ajudam: os projetos ainda são caros, com baixa penetração no público e não integrados no fluxo de produção das redações.

Onde o Covid-19 e a indústria imersiva tiveram alguma interação foi na criação de filtros – de gosto discutível – para Snapchat e também no desenvolvimento de simuladores para facilitar o treino de profissionais de saúde no uso de novos equipamentos como respiradores.

O que tudo isso indica, no entanto, é uma ampliação do espaço narrativo das experiências imersivas, de locais públicos como os novos jogos de VR para espaços privados, individuais. À medida que a tecnologia, especialmente a de telemóveis avança, essa personalização torna-se possível, na medida em que um número maior de pessoas possa participar. Massificação e personalização ao mesmo tempo.

Ao trazer histórias imersivas para o ambiente privado, ao usarmos o nosso corpo para nos sentirmos imersos, há uma possibilidade de promover maior entendimento e empatia. Talvez essas experiências que estão por vir possam começar a romper as bolhas digitais e comportamentais exacerbadas por algoritmos de redes sociais. Será o momento em que realidades – virtuais ou aumentadas – passam a ser apenas “reais”.

*) Eduardo Acquarone é doutorando em Ciências da Comunicação no Iscte – Instituto Universitário de Lisboa com a tese “Imerso na notícia: Como a Realidade Virtual pode ajudar o jornalismo a solucionar problemas reais”. Uma versão condensada deste artigo foi originalmente publicada no Sapo.